A CONSTRUÇÃO DA DIGNIDADE APÓS O ABUSO SEXUAL
CRISTIANE SEGATTO
PRECIOSA Precious (Gabourey Sidibe) e sua mãe (Mo'Nique) no filme de Lee Daniels
Preciosa é obesa mórbida, negra e praticamente analfabeta aos 16 anos. Vive no bairro do Harlem na Nova York dos anos 80. É violentada pelo pai – com o conhecimento da mãe – desde a primeira infância. Quando engravida dele pela segunda vez, é expulsa da escola. A mãe a escraviza e a submete a sucessivas agressões físicas e morais enquanto vive de papo pro ar, às custas do “vale-pobreza” que recebe do governo.
A história de Preciosa é uma ficção levada ao cinema pelo diretor americano Lee Daniels.
É interpretada com competência pela estreante Gabourey Sidibe (Preciosa) e pela versátil Mo'Nique, uma comediante que executa com brilhantismo o papel dramático da mãe cruel.
Assisti ao filme na segunda-feira (15) apesar dos muxoxos do meu marido. Em pleno Carnaval, ele queria uma historinha mais leve. O filme é perturbador. Não tanto pelas cenas de indignidade explícita, mas pela consciência de que elas acontecem na vida real e estão se repetindo agora mesmo, em todo lugar. No país mais rico do mundo, no Brasil, na África...em todo canto. O filme foi baseado no livro Preciosa (Editora Record), escrito em 1996 pela americana Sapphire e que agora chega ao Brasil. Ela trabalhou num abrigo de mulheres no Harlem e conhece de perto a realidade de quem nunca teve direito à autoestima. Mas há saída para garotas como Preciosa. No filme, ela é salva pela educação. Numa escola alternativa de nome sugestivo – Each one teach one (cada um ensina um), ela encontra uma professora engajada e, finalmente, aprende a ler e escrever.
A professora induzia as meninas a produzir diários. Pedia que elas contassem tudo. Qualquer coisa. Sempre. Toda anotação era valorizada. O importante era que elas lessem e escrevessem. A dignidade de Preciosa é construída conforme ela progride nas letras. Existe uma boa palavra em inglês para expressar transformações desse tipo. É empowerment. Depois de receber atenção e acreditar em seu próprio potencial, Preciosa se torna poderosa, toma as rédeas da própria vida. Percebe que é capaz de viver com dignidade, criar os dois filhos e deixar o passado no passado.
Sempre me emociono com histórias assim. Choro mesmo. Meu marido já sabe e respeita meu sentimento. Choro de emoção porque sei que personagens como a professora de Preciosa não são meros recursos de cinema para comover multidões. Choro porque sei que professores anônimos, que amam e honram a profissão, estão por toda parte. Fazem um trabalho de formiguinha – salvam uma vida aqui, outra ali. No conjunto, dão um futuro a milhões de brasileiros.
Passei a infância e a adolescência numa escola pública na Freguesia do Ó, um bairro de classe média baixa de São Paulo. Lembro até hoje da desesperança de um certo professor de Matemática. Ele dizia que, em vez de ir à escola, deveríamos catar papel na rua e vender. Segundo os cálculos estreitos dele, não teríamos a menor chance no mercado formal de trabalho. Nenhuma outra ocupação, portanto, poderia nos render mais dinheiro. Talvez ele pensasse que muitos de nós teríamos sucesso no mundo do crime. Mas isso ele jamais teve coragem de dizer.
Enquanto o professor de Matemática nos imputava sua visão mesquinha, o de Literatura nos apresentava o mundo. Com ele aprendi a ser curiosa, a garimpar informação, a perceber que a literatura é o maior patrimônio da humanidade. E a ter certeza de que o conhecimento é capaz de nos levar aonde quisermos.
A história de Preciosa é uma ficção levada ao cinema pelo diretor americano Lee Daniels.
É interpretada com competência pela estreante Gabourey Sidibe (Preciosa) e pela versátil Mo'Nique, uma comediante que executa com brilhantismo o papel dramático da mãe cruel.
Assisti ao filme na segunda-feira (15) apesar dos muxoxos do meu marido. Em pleno Carnaval, ele queria uma historinha mais leve. O filme é perturbador. Não tanto pelas cenas de indignidade explícita, mas pela consciência de que elas acontecem na vida real e estão se repetindo agora mesmo, em todo lugar. No país mais rico do mundo, no Brasil, na África...em todo canto. O filme foi baseado no livro Preciosa (Editora Record), escrito em 1996 pela americana Sapphire e que agora chega ao Brasil. Ela trabalhou num abrigo de mulheres no Harlem e conhece de perto a realidade de quem nunca teve direito à autoestima. Mas há saída para garotas como Preciosa. No filme, ela é salva pela educação. Numa escola alternativa de nome sugestivo – Each one teach one (cada um ensina um), ela encontra uma professora engajada e, finalmente, aprende a ler e escrever.
A professora induzia as meninas a produzir diários. Pedia que elas contassem tudo. Qualquer coisa. Sempre. Toda anotação era valorizada. O importante era que elas lessem e escrevessem. A dignidade de Preciosa é construída conforme ela progride nas letras. Existe uma boa palavra em inglês para expressar transformações desse tipo. É empowerment. Depois de receber atenção e acreditar em seu próprio potencial, Preciosa se torna poderosa, toma as rédeas da própria vida. Percebe que é capaz de viver com dignidade, criar os dois filhos e deixar o passado no passado.
Sempre me emociono com histórias assim. Choro mesmo. Meu marido já sabe e respeita meu sentimento. Choro de emoção porque sei que personagens como a professora de Preciosa não são meros recursos de cinema para comover multidões. Choro porque sei que professores anônimos, que amam e honram a profissão, estão por toda parte. Fazem um trabalho de formiguinha – salvam uma vida aqui, outra ali. No conjunto, dão um futuro a milhões de brasileiros.
Passei a infância e a adolescência numa escola pública na Freguesia do Ó, um bairro de classe média baixa de São Paulo. Lembro até hoje da desesperança de um certo professor de Matemática. Ele dizia que, em vez de ir à escola, deveríamos catar papel na rua e vender. Segundo os cálculos estreitos dele, não teríamos a menor chance no mercado formal de trabalho. Nenhuma outra ocupação, portanto, poderia nos render mais dinheiro. Talvez ele pensasse que muitos de nós teríamos sucesso no mundo do crime. Mas isso ele jamais teve coragem de dizer.
Enquanto o professor de Matemática nos imputava sua visão mesquinha, o de Literatura nos apresentava o mundo. Com ele aprendi a ser curiosa, a garimpar informação, a perceber que a literatura é o maior patrimônio da humanidade. E a ter certeza de que o conhecimento é capaz de nos levar aonde quisermos.
CRISTIANE SEGATTO -
Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo.
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Se hoje sou jornalista foi porque não acreditei no professor de Matemática. Fui salva pelo de Literatura. Há alguns anos, procurei saber por onde andava o professor Fernando Freire, que não via desde 1985. Descobri que está aposentado e vive num sítio na região de Guaratinguetá, no interior de São Paulo. Continua sendo um leitor compulsivo. Lê de tudo. Da Revista Tititi a James Joyce. Fiquei surpresa quando disse, orgulhoso, que acompanha o meu trabalho. Chorei sem parar quando a mensagem dele surgiu no meu Orkut: “Leio todos os seus artigos. Me encantam a precisão, a objetividade e a secura. Não há firulas. Continue assim. Estou te acompanhando pari-passo”.
O estímulo de um bom professor é capaz de promover mudanças gigantescas. De ordem pessoal e social. Por muito tempo achei que eu era uma das únicas almas salvas por Fernando. Estava redondamente enganada. No perfil dele no Orkut, encontrei 360 mensagens. A maioria de ex-alunos que nunca se esquecerem do mestre. Agradecem por terem aprendido a amar os livros. Muitos progrediram nos estudos e na escala social. Encontrei ali psicólogos, professores universitários, dentistas, jornalistas, advogados, uma diplomata.
Depois de plantar tantas sementes, Fernando se dedica hoje a outro tipo de cultivo. Está empenhado em ajudar a reflorestar a Mata Atlântica e se encanta com as mudas raras que tem conseguido semear. Esse homem é ou não é um exemplo?
Professores são, muitas vezes, as principais referências de comportamento social e intelectual que as crianças e os adolescentes podem ter. Se os mestres forem inspiradores, os alunos (pelos menos os mais interessados) se tornam capazes de superar grandes adversidades.
A essa altura, querido leitor, você deve estar se perguntando por que estou falando tanto sobre educação se o tema da minha coluna é saúde. Foi exatamente a pergunta da minha filha de 9 anos quando lhe disse que a coluna desta semana seria sobre o filme Preciosa. Por favor, não desista. Estou chegando lá. A educação é um fator primordial na construção de dignidades. Mas não é o único. Outro eixo importante é a saúde. Os professores e os profissionais de saúde são grandes construtores de cidadania. Eles é que reerguem pessoas que, de outra forma, não teriam a menor perspectiva de levar uma vida digna. Eles fazem o tal empowerment.
O posto de saúde costuma ser o primeiro (às vezes, o único) lugar onde as vítimas de abuso moral ou sexual se sentem acolhidas. É ali que encontram gente capaz de ouvir, de orientar, de mostrar a luz. Se os profissionais de saúde tivessem que dar conta apenas das doenças do corpo, a vida deles seria fácil. No entanto, lidam frequentemente com a violência doméstica, com todo tipo de dominação emocional e material que afetam a alma. É um trabalho dificílimo, mas muitas vezes recebem trapos humanos e conseguem devolver gente à sociedade.
Tive uma amostra disso em janeiro. Estava de férias em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Minha filha pegou a tal virose que levou tanta gente ao hospital. Fomos parar no Pronto-Socorro de Boiçucanga. Ela precisou receber soro. Passei um dia inteiro nessa unidade do SUS e pude acompanhar um pouco dos dramas que a equipe enfrenta ali.
Na cama próxima à da minha filha estava uma moça franzina de 20 anos. Estava casada há apenas uma semana. O marido, violento, a submetia a empurrões, safanões, ameaças pelos motivos mais fúteis. Pela descrição que ouvi, é um sujeito possessivo, que se acha dono da mulher. Na véspera, ele a ameaçou com uma peixeira. Ela pulou da janela do primeiro andar e foi parar no hospital.
Tinha a expressão apática. Não demonstrava raiva ou indignação. Passivamente se submetia à insanidade alheia. Fiquei com a impressão de que ela já havia entrado num processo de dependência emocional, sexual e material que minava sua autoestima. A mãe tentava tirá-la da resignação dizendo que ela precisava se separar daquele homem, que aquele casamento havia sido um erro e tudo mais que uma mãe pode dizer numa hora dessas. Nada parecia surtir efeito.
O que mais me impressionou foi a atitude da enfermeira. Havia vários pacientes ali e ela cuidou de todos com atenção. Mas dedicou tempo e paciência tentando ajudar aquela moça a se ajudar. Conversou muito, com paciência e firmeza. Aconselhou-a a dar um basta, a denunciar aquele homem, a se reerguer. Suspeito que nesse caso específico, o esforço dela não surtiu resultado. Mas certamente já fez diferença em outros casos e continuará fazendo.
O americano Lee Daniels dedicou seu filme às garotas preciosas de todo lugar. Dedico essa coluna ao professor Fernando Freire, às enfermeiras do Pronto-Socorro de Boiçucanga e aos tantos profissionais anônimos que, neste exato momento, estão construindo dignidades por esse Brasil afora.
E você? Conhece alguém que construiu sua dignidade com a ajuda de um professor ou de um profissional de saúde? Conte essa história. Queremos ouvir a sua opinião. (Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras.)