A história de vida de Maria da Penha, comum a de tantas mulheres que levam no corpo e na alma as marcas visíveis e invisíveis da violência, tornou-a protagonista de um litígio internacional emblemático para o acesso à justiça e a luta contra a impunidade em relação à violência doméstica contra as mulheres no Brasil. Ícone dessa causa, sua vida está simbolicamente subscrita e marcada sob o nome de uma lei.
A Lei Maria da Penha representa inegável avanço na normativa jurídica nacional: modifica a resposta que o Estado dá à violência doméstica e familiar contra as mulheres, incorporando a perspectiva de gênero e direitos humanos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará); rompe com paradigmas tradicionais do Direito; dá maior ênfase à prevenção, assistência e proteção às mulheres e seus dependentes em situação de violência, ao mesmo tempo em que fortalece a ótica repressiva, na medida necessária; e trata a questão na perspectiva da integralidade, multidisciplinaridade, complexidade e especificidade, como se demanda que seja abordado o problema.As leis são instrumentos para concretizar princípios, garantir direitos, fazer realidade nossa cidadania.
Uma lei que abarca a violência doméstica contra as mulheres em ampla dimensão - e não a trata de maneira isolada, senão conectada a políticas públicas intersetoriais - tem múltiplos desafios. O maior deles, talvez: a mudança de olhar e atitude. Melhor não poderia ser, pois, a convocatória de 2008 para a Campanha dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher: “Há momentos em que sua atitude faz a diferença. Lei Maria da Penha. Comprometa-se”.Em dois anos de vigência da lei, o processo de sua implementação ainda está só começando, com avanços, obstáculos e desafios.
A mudança estrutural nas dinâmicas institucionais e em comportamentos culturais que a lei reflete e invoca não se opera em curto prazo. Mas urgem atitudes de comprometimento com a lei, por parte de distintos atores, que fazem e farão a diferença. Hoje, chamemos ao compromisso ao menos um ator em especial: o Poder Judiciário, particularmente o Supremo Tribunal Federal.Em virtude da controvérsia judicial que se instalou no país sobre a aplicação da Lei Maria da Penha, com decisões que afirmam tanto a inconstitucionalidade, como a constitucionalidade da lei, o Presidente da República ingressou, em dezembro de 2007, com Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC/19) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com o fim de obter a declaração de constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da lei, por entender que a mesma não viola: o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, CF); a competência atribuída aos Estados para fixar a organização judiciária local (art. 125 § 1º c/c art. 96, d, CF) e a competência dos juizados especiais (art. 98, I, CF). Corretíssima interpretação constitucional.
Atitude de comprometimento jurídico-político na iniciativa presidencial.
Atitude de comprometimento, ainda, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que na referida ação ingressou com Amicus Curiae (“Amigo da Corte”) em defesa da constitucionalidade da Lei Maria da Penha; assim como, no marco dos 25 de novembro, Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher, da mesma forma o fazem Cladem/Brasil (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) junto com as organizações que o integram: Themis-Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, Ipê - Instituto para a Promoção da Equidade e Instituto Antígona.Qual será, pois, a atitude de comprometimento da cúpula da Justiça brasileira para com a lei nesse contexto, considerando-se ainda haver 83% de aprovação à lei pela população (pesquisa Ibope/Themis)?Por ocasião do evento público de reparação material (pagamento de indenização) e simbólica (pedido de desculpas) do governo do Ceará à Maria da Penha (07.07.08), em cumprimento às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Informe 54/2001), Maria da Penha afirmou: “Estou muito feliz por receber essa indenização, mas minha maior alegria segue sendo a existência da Lei 11.340/06, chamada Lei Maria da Penha, que me permite dividir com cada mulher que sofre violência nesse país.
É ela que garante que a dignidade da mulher exige respeito e que transforma a violência contra a mulher em crime contra os direitos humanos”. E apontou: “há muito que se fazer para resgatar a dívida histórica para com as mulheres”, indicando investimentos a serem feitos para a “desconstrução da cultura machista”, com a correta aplicação da Lei Maria da Penha.
A declaração de constitucionalidade da Lei Maria da Penha pelo STF representará, assim, não só legítimo direito constitucional das mulheres - à igualdade, à não-discriminação e a viver livre de violência – mas também expressão simbólica de resgate dessa dívida histórica. Direito constitucional que merece, ainda, ser objeto de uma súmula vinculante, afirmando-o como jus cogens (norma imperativa), pois assim o são os direitos de igualdade e acesso à justiça em âmbito nacional e internacional, conforme entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Razão maior para que o órgão máximo da Justiça brasileira reconheça a constitucionalidade da lei e seu caráter de imperatividade, pondo fim à violência institucional que, por ação ou omissão, tolera e perpetua a violência doméstica e familiar contra as mulheres como sistemática violação aos direitos humanos no país. Em outras palavras... Lei Maria Penha: STF Comprometa-se!
* Valéria Pandjiarjian: 39; é advogada feminista, responsável pelo programa de litígio internacional do Cladem (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher). Membro do Cladem/Brasil desde 1992; integra também a fundação e o conselho de várias organizações de mulheres no país.
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